Texto publicado no Catálogo da Mostra Charles Chaplin - CHM/BH/2012
Quando nos admiramos hoje com a aparente facilidade com que os números cômicos e os achados cinematográficos de Chaplin se sucedem em O Circo (1928), seu terceiro trabalho na United Artists depois de Casamento ou Luxo? (1923) e A Corrida do Ouro (1925), é impossível imaginar o quanto a produção desse filme foi conturbada e problemática, envolvendo uma separação escandalosa, ameaças judiciais, perda de negativos e catástrofes que comprometeram o set em mais de uma ocasião. Como lembra seu biógrafo David Robinson, isso talvez explique porque dentre todos os longas de Chaplin esse foi o único que não mereceu uma nota sequer na sua extensa auto-biografia.
Embora
sejam dignos da nossa ilimitada curiosidade pela vida dos diretores e das
estrelas de cinema, a verdade é que hoje esse dados circunstancias não fazem muita
diferença. Que esse filme tenha sido premiado na primeira cerimônia do Academy
Awards (o futuro Oscar), como se apressam em assinalar alguns de seus
comentadores, também é algo que nos parece de pouco interesse perto do feito
cinematográfico que Chaplin realiza aqui, e que qualquer espectador de boa fé é
capaz de reconhecer e constatar por si mesmo.
Embora
nunca tenha gozado da celebridade de filmes como O garoto (1921) e A corrida
do Ouro, O Circo é tão ou mais inspirado do que esses trabalhos anteriores
(ou do que qualquer outro filme de Chaplin), o que torna absolutamente
injustificável que possa ocupar uma posição menor na sua trajetória. É possível
admitir, sem qualquer constrangimento, que seu argumento não é muito original.
Chaplin contou inúmeras vezes a história do triângulo amoroso entre o
vagabundo, a mocinha desprotegida e o galã - com este último já na sua versão
de artista inspirado em O Vagabundo
(1916). Além disso, o contexto do espetáculo e do cotidiano circense é ainda
próximo demais das origens do burlesco para oferecer um contraste satisfatório
às peripécias do comediante. Nesse sentido, os panos de fundo de A Corrida do Ouro, Tempos Modernos (1936) ou O
Grande Ditador (1940) permitem situações muito mais inusitadas e
pitorescas, e a mera sugestão do contexto da estória já produz de saída, além
de um bom argumento dramático, o efeito cômico de uma certa sobreposição. Mas
esse que poderia ser um aspecto desfavorável ao filme, Chaplin sabe exatamente
como transformá-lo num valor.
Desembaraçado
de qualquer amarra narrativa, a não ser pelo argumento modesto do triângulo
amoroso, Chaplin está inteiramente disponível aqui para levar a sua inventividade
cênica e cinematográfica ao limite. Sobre O
Circo já não pesa tanto o compromisso sentimental de filmes como O Garoto e Luzes da Cidade, o que faz com que o recurso ao melodrama ceda
lugar a uma encenação muito mais física e dinâmica. Seria preciso evocar os seus
curtas na Keystone e na First National para encontrar tamanha velocidade e
tamanho despojamento na exposição das ações e das idéias, à diferença que em O Circo elas não encontram qualquer
obstáculo técnico, sucedendo-se com a facilidade e a clareza de um curso
d'água.
Perto
do limiar que marcaria o fim do cinema mudo, portanto, Chaplin presta seu
primeiro grande tributo a essa época que se encerrava (haverá ainda Luzes da Ribalta, em 1952), realizando
um filme que evoca muito mais a economia narrativa dos primeiros chase films e do cinema de atração do
que a tradição griffithiana, que ele nunca deixou de reler ao seu modo. Mesmo
assim, Chaplin dá mostras de sua habilidade dramática ao condensar o contexto
da história nos seus três ou quatro minutos iniciais, abrindo caminho para que
o personagem invista sua energia numa seqüência de gags físicas e de proezas
acrobáticas que lembram as que Harold Lloyd, outro grande cômico dessa geração,
havia realizado em clássicos como Safety
Last! (1923).
Isso nos leva a uma segunda característica importante dos trabalhos de Chaplin, sobretudo os da fase muda. Apesar das inúmeras reviravoltas na narrativa, filmes como O Circo e A Corrida do Ouro, como diria Bazin, recusam-se a valorizar por muito tempo um número cômico, fazendo de cada nova cena a ocasião de uma descoberta. Num contexto como nosso, onde um único achado artístico, por mais medíocre que seja, é rodeado de caprichos e de desdobramentos conceituais de toda espécie, deveríamos nos envergonhar da quantidade de boas idéias por minuto que Chaplin, como um franco-atirador, é capaz de enfileirar em seus filmes, e do desprendimento com que passa de uma idéia a outra, sem sequer nos dar tempo de entender como aquilo foi possível, ou sem se preocupar em sublinhar o sentido da ação que acabamos de ver. A esse desprendimento no tratamento das idéias corresponde, por outro lado, uma capacidade de concisão das cenas que permanecerá como uma marca de seu estilo até a obra-prima A Condessa de Hong Kong (1967).
Ainda
que o tema do circo não seja muito original, Chaplin não deixa de aproveitar o
que ele pode lhe oferecer de melhor para o desenvolvimento da trama. Do ponto
de vista político, ele resgata um tema que lhe é caro, e que retomará de
diferentes maneiras ao longo de toda a sua obra: a necessidade de solidariedade
entre os homens, sobretudo entre os artistas e os desempregados, contra todo
tipo de opressão e de exploração social. Aos maus tratos e à proibição de comer
que o dono do circo impõem à própria filha, o filme contrapõem a atenção
dedicada a ela por Carlitos e pelos palhaços. Há também a demissão de um grupo
de funcionários que não receberam o pagamento do chefe, e que Chaplin, sem perder
o humor, usa como pretexto para uma gag rápida e impiedosa. A ética dos temas,
aliás, não exclui de maneira alguma o oportunismo cômico e desavergonhado do
personagem, capaz de usar sem nenhum constrangimento uma carteira encontrada no
seu bolso ou de se deliciar com o cachorro-quente de uma criança. Essa atenção
às questões humanas e sociais, aliada ao humor e a uma capacidade de síntese
espantosa para expressá-las, parece aproximar Chaplin de John Ford, outro
grande poeta da vida do homem comum americano (um poeta, como diria
Truffaut, para quem a palavra
"poesia" simplesmente não existe).
Mas
o tema do circo oferece também um outro componente dramático, bem menos nobre
do ponto de vista político e muito mais eletrizante do ponto de vista da ação:
os animais. Chaplin já havia se valido deles no excelente Vida de Cachorro (1918) e
em A Corrida do Ouro, e os utilizaria
também no seu trabalho seguinte, Luzes da
Cidade, mas em nenhum desses filmes a presença dos animais será tão
marcante e memorável quanto nas cenas protagonizadas por eles em O Circo. Chaplin, que testou quase todas
as modalidades possíveis de perseguição, inaugura uma nova ao ser acossado por
uma mula enraivecida até o picadeiro, onde mais uma vez, involuntariamente,
acaba por salvar o espetáculo. A devastação promovida pelos micos no seu número
com a corda bamba (sequência que, segundo consta, teria requerido mais de
setecentos takes para ser filmada) está entre as coisas mais engraçadas e mais
improváveis que o seu cinema produziu. Chaplin atinge nesses momentos uma
espécie de ápice criativo por meio de uma mistura rara entre a depuração da
cena e a acumulação das gags. Nada é
excessivo e nada parece imposto à força, mas as situações cômicas se acumulam a
tal ponto que a própria cena parece não caber mais dentro de si mesma (o que ao
fim só pode culminar com um estrondo, uma batida ou uma explosão, como se fosse
preciso dissipar de uma só vez a carga de energia acumulada).
Uma
outra sequência bastante célebre desse filme é aquela em que Chaplin se vê
preso dentro da jaula com o leão. Relembremos rapidamente os seus lances
essenciais. Tudo começa quando Carlitos engole sem querer o comprimido que
deveria soprar na boca do cavalo; logo depois, é perseguido (novamente) pela
mula e entra sem querer na jaula do leão adormecido. Daí em diante, o que vemos
é uma sucessão magistralmente orquestrada de golpes de azar e de desacertos: a
porta que se fecha sem querer, o encontro com o tigre na jaula vizinha, o
cachorro que começa a latir de fora da cela, a lata de água que quase cai no
chão. E novamente, cada elemento da cena parece encaixar-se com o elemento
precedente por uma estranha relação de necessidade, ao mesmo tempo em que o
conjunto da situação revela-se cada vez mais improvável e absurdo.
No
entanto, se essa sequência merece uma atenção especial é ainda por um outro
motivo. No seu célebre e controverso artigo Montagem
Proibida, o crítico francês Andre Bazin (que foi, aliás, quem melhor
escreveu sobre Chaplin), tomou essa cena como um dos exemplos de um postulado
bastante polêmico, mas cujo alcance para a crítica e para a teoria de cinema
permanece ainda hoje dificilmente mensurável. O que Bazin valorizava nesta cena
é o fato, a princípio secundário, de que Chaplin e o leão aparecem juntos no
mesmo plano, de forma que o filme consegue transmitir não apenas o sentido
desse encontro, mas o risco real da situação.
Não
vem ao caso entrar aqui nos pormenores da "montagem proibida" de
Bazin (coisa que Serge Daney fará de maneira exemplar nos anos 1970). Para
colocar em cheque seus argumentos mais imediatos bastaria, por exemplo, citar o
número da corda bamba em O Circo ou a
cena em que a casa pende no despenhadeiro em A Corrida do Ouro. Ambas expressam imaginariamente o perigo com a
mesma intensidade que a cena do leão, e nem por isso abrem mão de montagens e
trucagens de todo tipo. No entanto, o que nos interessa ressaltar aqui é
sobretudo o quanto a idéia da "montagem proibida" (para além de suas
fragilidades mas também do clichê, que só sabe acusar a obsessão
"realista" do crítico) aponta para a capacidade do cinema de explorar
a beleza do jogo cênico, assim como a riqueza das relações de continuidade
entre o espaço, o corpo, a natureza e os objetos.
Poucos
cineastas exploraram isso tão bem quanto Chaplin. E se insistimos na questão
dos animais, é porque em O Circo eles
parecem dar um novo ar à espontaneidade e à inventividade cênica que marcaram
época com o cinema burlesco. Para Bazin (que era ele mesmo um aficionado por
animais e que contrabandeou, numa empreitada chaplinesca, um papagaio do
Brasil), os bichos e a própria natureza, de maneira geral, possuem uma espécie
brilho próprio, porque seu modo de ser e suas vontades desafiam as leis e o
entendimento do homem. A presença dos animais traz sempre à cena algo de
circunstancial, imprevisível e
misterioso.
É evidente que a maneira de Chaplin se valer deles em O Circo é bastante pragmática, e não tem nada do poder e da imponência dos animais e da natureza nos filmes de um Flaherty ou de um Rossellini. Mas é justamente isso que interessa. Num filme como O Circo, o que os animais nos ajudam a enxergar não é a plenitude do mundo ou do estado natural ao qual eles pertencem, mas a beleza do artifício, a beleza dessa espécie de caos regulado que toma o espaço quando as coisas põe-se a agitar por todos os lados, como se movidas por uma vida própria. Tudo lembra a natureza em Chaplin porque tudo está vivo, tudo inclusive os móveis, os objetos, as roupas, o cenário, o espaço. Os animais vem apenas intensificar o prazer que sentimos pela aparente espontaneidade dessas invenções milimetricamente calculadas.
Para levar a analogia mais longe (agora sob o
forte risco de torná-la impertinente), não deveríamos reconhecer no próprio
Carlitos algo dessa inteligência indiferente e selvagem dos animais? Senão,
como explicar essa sua persistente inadequação ao nosso mundo? Como explicar a
sua docilidade ou o seu magnífico instinto de sobrevivência? Como explicar a
resignação solitária desse homem, abandonado à própria sorte no círculo de
terra do descampado vazio, num dos finais mais tristes e mais belos da história
do cinema?
Nenhum comentário:
Postar um comentário