sexta-feira, 15 de agosto de 2014


ANDREA TONACCI: A INVENÇÃO COMO GÊNERO

"Never any young adventurer's missfortunes, I believe, 
began sooner, or continued longer than mine." 
Robinson Crusoe, Daniel Defoe 

            Dos realizadores hoje em atividade no Brasil, nenhum deles é movido por um compromisso tão agudo com a sua própria intuição quanto Andrea Tonnaci. Não fosse pela trágédia que encerrou de maneira súbita a vida e a carreira de Eduardo Coutinho, no início de 2014, ele talvez fosse um dos únicos capazes de lhe fazer companhia, ao menos nessa frente avançada de expressão de uma sensibilidade artística que se confunde tanto com a vida pessoal quanto com o contexto político que a envolve. Tonacci, com Serras da Desordem, já havia feito o seu Cabra marcado para morrer. Agora, com Já visto Jamais visto, ele vai um pouco mais longe (ou um pouco mais perto, dependendo do ponto de vista) e nos oferece a sua própria versão de um clássico, não mais do cinema brasileiro, mas da literatura universal – algo como o nosso Robinson Crusoe, A volta ao mundo em oitenta dias ou A ilha do tesouro. Estão ali, a começar pelos créditos, as letras douradas, a ilustração antiga, a diagramação um pouco rude das coleções. Que os pais coloquem os filhos nos colos, e leiam esse filme por sobre os seus ombros! Finalmente o cinema brasileiro – nesse aspecto muito aquém da literatura, para dizer o mínimo – encontra uma figuração digna dos sentimentos conturbados e aventurescos da infância, com todo seu entorno mítico, sua fascinação pelo desconhecido, sua familiaridade inocente com o sagrado.

            Nada que a própria obra de Tonacci já não tivesse antecipado. O gosto pela aventura, bem como o desconforto que os seus personagens sempre nutriram em relação à sociedade (em Olho por Olho e Bang Bang, por exemplo) desemboca quase que naturalmente nessa energia que o liga cada vez mais, com o passar dos anos, ao mundo espiritual e selvagem das florestas, dos índios, da infância, em suma, a tudo aquilo que ainda não foi domesticado pela razão burguesa e pela "vida média", aquela dos confortos e dos deveres comedidos. A obra de Tonacci, no seu conjunto, é a história dessa "fuga utópica para trás". Verdade que se aplica também ao modo de fabricação e de recepção dos seus filmes mais recentes, em nada condescendentes com o gosto "médio", ou com a expectativa dos festivais, do público, dos especialistas ou mesmo dos próprios realizadores. Ao lado de Serras da Desordem, Já visto Jamais visto dá pela segunda vez, num intervalo de menos de dez anos, um testemunho claro do significado e da importância da obra do diretor no atual panorama do cinema brasileiro e internacional. Movido por um raro senso de destemor e de descompromisso, Tonacci faz dos seus filmes exatamente o que pensa, parecendo ignorar, no mais das vezes, o que quer que seja essa força normativa muito em voga entre nós, chamada "cinema contemporâneo". Tão forte é a paixão e a necessidade pessoal de criação que esse filme irradia, que num contexto como nosso – organizado em torno do mercado, dos festivais e de suas subcelebridades – Já visto Jamais visto soa como uma melodia de outro mundo, uma rara visão, em todos os sentidos, de uma época perdida.

            Mais do que um filme de arquivo ou um diário, Já visto Jamais visto – e isso nada mais é do que uma impressão pessoal – é essencialmente uma obra de ficção, impulsionada, na maior parte do tempo, por uma admirável habilidade dramática. Poderíamos falar talvez de um "filme-diário de gênero", ou num "filme de suspense ensaístico", protagonizado pelas memórias pessoais e pelas imagens do cineasta, algumas delas separadas no tempo por mais de trinta anos, entre projetos terminados e obras inacabadas. Clássicos da história do cinema brasileiro, como Bang Bang e Olho por olho, dividem espaço com trabalhos interrompidos e nunca mostrados, em particular o diário At any time..., iniciado nos anos 1970, e um filme de ficção, Paixões, de 1994 (esforço de recuperação e restauração já documentado de modo abrangente e sensível no texto-depoimento de um de seus colaboradores: Do arquivo ao filme: sobre Já visto Jamais visto, de Patrícia Mourão). Que esse filme nasça já impregnado pelo tempo – de uma vida e de um século – é certamente uma vantagem sobre o que qualquer cineasta resolva fazer da noite para o dia, mas isso em nada facilita a tarefa, e significa muito pouco sem uma determinação e uma consciência artísticas fortes o suficiente para dar-lhe hoje uma forma e um sentido. Ninguém, por isso mesmo, salvo o próprio Tonacci, poderia voltar a esse material. E ninguém, salvo Cristina Amaral, sua companheira de vida e profissão, poderia ajudar a montá-lo com tanta inteligência e sensibilidade.

            Questão de intuição, mas também de método. O argumento que organiza essa longa viagem ao passado, o centro difuso da narrativa, se for possível falar apenas de um, é Paixões, no qual o próprio filho de Tonacci, na altura com nove anos, representa o jovem protagonista da trama. Em meio aos restos de terra revolvidos por um trator próximo a sua casa, ele encontra um vaso antigo, e dentro dele, uma chave. Descoberta essa filmada como um pequeno furto prometéico, na qual o garoto leva vantagem sobre um arqueólogo, um tipo solitário e melancólico, saído de uma revista em quadrinhos ou de um romance de detetive (A Thief of Time, de Tony Hillerman, aparece em algum momento nos bastidores da filmagem). Tonacci descreve assim a atmosfera da infância, ou melhor, suas paisagens – o mundo, como um corpo vivo, expele coisas, ilumina, relampeja, escurece, refletindo ou ordenando as palpitações mais íntimas dos sentimentos. Depois, o mistério dos objetos: uma chave, um livro, um despertador, uma lupa. Pudesse uma criança ver a sua própria infância de fora – diria Henry James sobre A ilha do tesouro, de Stevenson – é rigorosamente esse o retrato que ela faria! Tamanha é a força poética da câmera de Tonacci, tamanha a fidelidade de sua imaginação ao espírito da infância, que mesmo as coisas mais triviais aparecem aqui emolduradas por uma aura simbólica. Tudo é ao mesmo tempo ameaçador e reconfortante. Tudo é marcado pelo mistério de um mundo ainda não completamente explicado, e por isso mesmo, sagrado em seus mínimos detalhes (nunca estivemos tão perto, no cinema brasileiro, dos filmes de Antônio Reis e Margarida Cordeiro).

            A partir desse eixo principal, Tonacci parte para variações mais ou menos localizáveis no espaço e no tempo, integrando-as de maneira descontínua ao argumento de Paixões: uma viagem por antigos monumentos e catedrais italianas converte-se num sonho sombrio, labiríntico, povoado por corredores, pátios, portais, passagens secretas. A visita a um museu medieval evoca sofrimentos antigos e intermináveis, seres abandonados à uma morte cruel. Curiosamente, a própria informalidade dos registros, sua falta de intenção e de cálculo, acaba intensificando a sensação de desemparo da criança diante daquilo que ela vê. O peso do passado contrasta assim com a sua inocência e com seu corpo frágil, revelando essa enorme desproporção que existe entre o sentido da história coletiva e aquilo que somos capazes de entender e absorver individualmente.

            Mas nada nesse filme se coloca de maneira ostensiva e vulgar, nenhum aparato teórico, nada como uma idéia prévia ou um conceito, ilustrado pelas imagens, nenhuma "concepção da história" – apenas esse ritmo livre, cadenciado da montagem, feito de movimentos suaves, síncopes, cortes bruscos, paradas – em suma, por essa orquestração musical dos tempos e dos espaços. À maneira de um pintor ou de um poeta, Tonacci e Crisitina Amaral não trabalham a partir de significados prontos; buscam, isso sim, entender a evolução do seu próprio traçado à medida que ele acontece, transformando-o ao longo do caminho, procurando revelar na passagem de uma imagem a outra uma significação ainda nascente nas coisas.

            São notáveis, nesse sentido, essas pequenas cenas de bastidores – preparações de filmagem, conversas informais, encontros familiares – acompanhadas com frequência por uma mudança de registro da imagem. No mais das vezes, essas mudanças de registro são reveladoras de um gosto pela imperfeição do processo de criação, bem como por esse caráter "artesanal" do cinema que Tonacci numa cansou de trazer a tona em seus filmes, seja em Bang, Bang, Interprete mais ganhe mais, Os Arara ou Serras da Desordem. Da mesma maneira que em Serras da Desordem, aliás, essas mudanças de registro (do documentário à ficção, do digital à película) parecem indicar menos uma preocupação estilística (não são um efeito, pra ser mais exato) do que a necessidade de Tonacci de fazer avançar a narrativa a um novo nível, a uma nova camada, como um restaurador que resolvesse revelar progressivamente os desenhos escondidos por trás da cobertura de uma parede antiga. Da referência visual mais forte e presente, o filme Paixões, passa-se aos poucos a esse drama mais essencial, a essa outra camada – a convivência familiar, os bastidores do filme – sem que os traços da primeira sejam no entanto completamente apagados. Não estranha que Tonacci e Cristina Amaral recorram à fusão mais de uma vez ao longo do filme, como se a tela bidimensional do cinema não comportasse essa permanente sobreposição de idéias, de personagens e de contextos dramáticos.

            Um pouco depois da metade do filme, um novo círculo se abre: do universo algo mítico e atemporal da infância, passa-se à violência dos regimes totalitários que marcaram a segunda metade do século passado, em particular o regime ditatorial brasileiro. Entramos aqui numa espécie de "adolescência" do filme – e porque não, do próprio Tonacci, com 20 anos em 1964, ano do golpe militar no Brasil. Esse trecho mistura imagens documentais das demonstrações bélicas e ufanistas do regime a fragmentos de filmes do próprio diretor, feitos em finais dos anos 1960 e início dos 1970, quase como uma resposta direta – e com frequência ácida e bem-humorada – ao absurdo da repressão política. Como no restante do filme, essas imagens surjem como um lampejo, atravessadas por sons, melodias e sinais nem sempre claros, para voltarem novamente a essa espécie de inconsciente tumultuoso do tempo.

            Mais à frente, a guerra e o universo militar retornam nos vestígios da história do pai de Tonacci, esse mesmo oficial que ele procura reviver, trajando seu uniforme, no roteiro de Paixões. As imagens desse projeto interrompido em 1994 marcam, novamente ao fim do filme, o encerramento desse curto-circuito histórico vertiginoso, em que as memórias pessoais, os traumas e as experiências de uma vida habitam diferentes corpos e objetos, numa dinâmica quase mítica de passagens iniciáticas, sobrevivências e incorporações (uma consequência possível – me agrada imaginar – de sua persistente curiosidade pelo pensamento indígena, ou simplesmente por modos menos científicos de entender a relação entre a vida e a morte, o presente e o passado).

            Sentado sobre a cama e confrontando-nos diretamente pela primeira vez no filme, Tonacci pode ler então a sua carta-manifesto, um trecho de O Desprezo, de Alberto Moravia, em defesa de um cinema cuja forma e fabricação estejam completamente mergulhadas na vida pessoal: "a maneira mecânica e habitual com a qual se elabora o roteiro assemelha-se a uma espécie de estupro do engenho, originado mais da vontade e do interesse, que de qualquer inspiração ou simpatia. Naturalmente, pode também acontecer que o filme seja de qualidade superior. Que o diretor e os colaboradores estejam ligados já em precedência, de mútua estima e amizade e que por, em suma, o trabalho se desenvolva naquelas condições ideais que possam verificar-se em qualquer atividade humana, por quanto ingrata. Mas estas favoráveis combinações são raras, como de fato são raros os bons filmes".

            Narrativa de aventura, filme de terror, romance de formação, ficção científica mabuseana, novela detetivesca – todas essas visões estão presentes em Já Visto Jamais Visto, mas nunca como fases distintas, e sim como "um só movimento fílmico, corporificadas por um constante elo de lirismo" (Glauber sobre Humberto Mauro). É fascinante que Tonacci e Cristina Amaral tenham conseguido desenhar todo esse percurso quase que naturalmente, sem impor nada a força ao espectador, e sem recorrer a qualquer tipo de referência literária e textual mais concreta, como cartelas ou offs. Numa época em que os jovens realizadores se deixam fascinar cada vez  mais pela idéia do "filme de gênero" (o que está longe de ser, por si só, um problema) Tonacci dá mais uma impressionante lição de como encontrar o sentido do medo e da emoção (e isso sim, é um mérito raro) a partir de uma necessidade absolutamente vital e dramática, e não apenas como um mero capricho estilístico. Com ele, o cinema de invenção brasileiro sobrevive.

  Publicado originalmente na revista La Furia Humana #20 
http://www.lafuriaumana.it/

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