ANDREA TONACCI: A INVENÇÃO COMO GÊNERO
"Never any young adventurer's missfortunes, I believe,
began sooner, or continued longer than mine."
Robinson Crusoe, Daniel Defoe
Dos realizadores hoje em atividade
no Brasil, nenhum deles é movido por um compromisso tão agudo com a sua própria
intuição quanto Andrea Tonnaci. Não fosse pela trágédia que encerrou de maneira
súbita a vida e a carreira de Eduardo Coutinho, no início de 2014, ele talvez fosse
um dos únicos capazes de lhe fazer companhia, ao menos nessa frente avançada de
expressão de uma sensibilidade artística que se confunde tanto com a vida
pessoal quanto com o contexto político que a envolve. Tonacci, com Serras da Desordem, já havia feito o seu
Cabra marcado para morrer. Agora, com
Já visto Jamais visto, ele vai um pouco mais longe (ou um pouco
mais perto, dependendo do ponto de vista) e nos oferece a sua própria versão de
um clássico, não mais do cinema brasileiro, mas da literatura universal – algo
como o nosso Robinson Crusoe, A volta ao
mundo em oitenta dias ou A ilha do
tesouro. Estão ali, a começar pelos créditos, as letras douradas, a
ilustração antiga, a diagramação um pouco rude das coleções. Que os pais
coloquem os filhos nos colos, e leiam esse filme por sobre os seus ombros!
Finalmente o cinema brasileiro – nesse aspecto muito aquém da literatura, para
dizer o mínimo – encontra uma figuração digna dos sentimentos conturbados e
aventurescos da infância, com todo seu entorno mítico, sua fascinação pelo
desconhecido, sua familiaridade inocente com o sagrado.
Nada que a própria obra de Tonacci
já não tivesse antecipado. O gosto pela aventura, bem como o desconforto que os
seus personagens sempre nutriram em relação à sociedade (em Olho por Olho e Bang Bang, por exemplo) desemboca quase que naturalmente nessa
energia que o liga cada vez mais, com o passar dos anos, ao mundo espiritual e
selvagem das florestas, dos índios, da infância, em suma, a tudo aquilo que
ainda não foi domesticado pela razão burguesa e pela "vida média",
aquela dos confortos e dos deveres comedidos. A obra de Tonacci, no seu
conjunto, é a história dessa "fuga utópica para trás". Verdade que se
aplica também ao modo de fabricação e de recepção dos seus filmes mais
recentes, em nada condescendentes com o gosto "médio", ou com a
expectativa dos festivais, do público, dos especialistas ou mesmo dos próprios
realizadores. Ao lado de Serras da
Desordem, Já visto Jamais visto
dá pela segunda vez, num intervalo de menos de dez anos, um testemunho claro do
significado e da importância da obra do diretor no atual panorama do cinema
brasileiro e internacional. Movido por um raro senso de destemor e de descompromisso,
Tonacci faz dos seus filmes exatamente o que pensa, parecendo ignorar, no mais
das vezes, o que quer que seja essa força normativa muito em voga entre nós,
chamada "cinema contemporâneo". Tão forte é a paixão e a necessidade
pessoal de criação que esse filme irradia, que num contexto como nosso –
organizado em torno do mercado, dos festivais e de suas subcelebridades – Já visto Jamais visto soa como uma
melodia de outro mundo, uma rara visão, em todos os sentidos, de uma época
perdida.
Mais do que um filme de arquivo ou
um diário, Já visto Jamais visto – e isso
nada mais é do que uma impressão pessoal –
é essencialmente uma obra de ficção, impulsionada, na maior parte do tempo,
por uma admirável habilidade dramática. Poderíamos falar talvez de um
"filme-diário de gênero", ou num "filme de suspense
ensaístico", protagonizado pelas memórias pessoais e pelas imagens do
cineasta, algumas delas separadas no tempo por mais de trinta anos, entre
projetos terminados e obras inacabadas. Clássicos da história do cinema
brasileiro, como Bang Bang e Olho por olho, dividem espaço com
trabalhos interrompidos e nunca mostrados, em particular o diário At any time..., iniciado nos anos 1970, e um filme de ficção, Paixões, de 1994 (esforço de recuperação
e restauração já documentado de modo abrangente e sensível no texto-depoimento
de um de seus colaboradores: Do arquivo
ao filme: sobre Já visto Jamais visto, de Patrícia Mourão). Que esse filme nasça
já impregnado pelo tempo – de uma vida e de um século – é certamente uma
vantagem sobre o que qualquer cineasta resolva fazer da noite para o dia, mas
isso em nada facilita a tarefa, e significa muito pouco sem uma determinação e
uma consciência artísticas fortes o suficiente para dar-lhe hoje uma forma e um
sentido. Ninguém, por isso mesmo, salvo o próprio Tonacci, poderia voltar a
esse material. E ninguém, salvo Cristina Amaral, sua companheira de vida e profissão,
poderia ajudar a montá-lo com tanta inteligência e sensibilidade.
Questão de intuição, mas também de
método. O argumento que organiza essa longa viagem ao passado, o centro difuso da
narrativa, se for possível falar apenas de um, é Paixões, no qual o próprio filho de Tonacci, na altura com nove
anos, representa o jovem protagonista da trama. Em meio aos restos de terra
revolvidos por um trator próximo a sua casa, ele encontra um vaso antigo, e
dentro dele, uma chave. Descoberta essa filmada como um pequeno furto
prometéico, na qual o garoto leva vantagem sobre um arqueólogo, um tipo
solitário e melancólico, saído de uma revista em quadrinhos ou de um romance de
detetive (A Thief of Time, de Tony
Hillerman, aparece em algum momento nos bastidores da filmagem). Tonacci
descreve assim a atmosfera da infância, ou melhor, suas paisagens – o mundo,
como um corpo vivo, expele coisas, ilumina, relampeja, escurece, refletindo ou ordenando
as palpitações mais íntimas dos sentimentos. Depois, o mistério dos objetos: uma
chave, um livro, um despertador, uma lupa. Pudesse uma criança ver a sua
própria infância de fora – diria Henry James sobre A ilha do tesouro, de Stevenson – é rigorosamente esse o retrato
que ela faria! Tamanha é a força poética da câmera de Tonacci, tamanha a fidelidade
de sua imaginação ao espírito da infância, que mesmo as coisas mais triviais aparecem
aqui emolduradas por uma aura simbólica. Tudo é ao mesmo tempo ameaçador e
reconfortante. Tudo é marcado pelo mistério de um mundo ainda não completamente
explicado, e por isso mesmo, sagrado em seus mínimos detalhes (nunca estivemos
tão perto, no cinema brasileiro, dos filmes de Antônio Reis e Margarida
Cordeiro).
A partir desse eixo principal,
Tonacci parte para variações mais ou menos localizáveis no espaço e no tempo,
integrando-as de maneira descontínua ao argumento de Paixões: uma viagem por antigos monumentos e catedrais italianas
converte-se num sonho sombrio, labiríntico, povoado por corredores, pátios,
portais, passagens secretas. A visita a um museu medieval evoca sofrimentos
antigos e intermináveis, seres abandonados à uma morte cruel. Curiosamente, a
própria informalidade dos registros, sua falta de intenção e de cálculo, acaba intensificando
a sensação de desemparo da criança diante daquilo que ela vê. O peso do passado
contrasta assim com a sua inocência e com seu corpo frágil, revelando essa
enorme desproporção que existe entre o sentido da história coletiva e aquilo
que somos capazes de entender e absorver individualmente.
Mas nada nesse filme se coloca de
maneira ostensiva e vulgar, nenhum aparato teórico, nada como uma idéia prévia
ou um conceito, ilustrado pelas imagens, nenhuma "concepção da
história" – apenas esse ritmo livre, cadenciado da montagem, feito de
movimentos suaves, síncopes, cortes bruscos, paradas – em suma, por essa orquestração
musical dos tempos e dos espaços. À maneira de um pintor ou de um poeta, Tonacci
e Crisitina Amaral não trabalham a partir de significados prontos; buscam, isso
sim, entender a evolução do seu próprio traçado à medida que ele acontece, transformando-o
ao longo do caminho, procurando revelar na passagem de uma imagem a outra uma significação
ainda nascente nas coisas.
São notáveis, nesse sentido, essas
pequenas cenas de bastidores – preparações de filmagem, conversas informais,
encontros familiares – acompanhadas com frequência por uma mudança de registro
da imagem. No mais das vezes, essas mudanças de registro são reveladoras de um
gosto pela imperfeição do processo de criação, bem como por esse caráter
"artesanal" do cinema que Tonacci numa cansou de trazer a tona em
seus filmes, seja em Bang, Bang, Interprete mais ganhe mais, Os Arara ou Serras da Desordem. Da mesma maneira que em Serras da Desordem, aliás, essas mudanças de registro (do
documentário à ficção, do digital à película) parecem indicar menos uma preocupação
estilística (não são um efeito, pra ser mais exato) do que a necessidade de
Tonacci de fazer avançar a narrativa a um novo nível, a uma nova camada, como um
restaurador que resolvesse revelar progressivamente os desenhos escondidos por
trás da cobertura de uma parede antiga. Da referência visual mais forte e
presente, o filme Paixões, passa-se
aos poucos a esse drama mais essencial, a essa outra camada – a convivência
familiar, os bastidores do filme – sem que os traços da primeira sejam no
entanto completamente apagados. Não estranha que Tonacci e Cristina Amaral
recorram à fusão mais de uma vez ao longo do filme, como se a tela
bidimensional do cinema não comportasse essa permanente sobreposição de idéias,
de personagens e de contextos dramáticos.
Um pouco depois da metade do filme,
um novo círculo se abre: do universo algo mítico e atemporal da infância, passa-se
à violência dos regimes totalitários que marcaram a segunda metade do século
passado, em particular o regime ditatorial brasileiro. Entramos aqui numa
espécie de "adolescência" do filme – e porque não, do próprio
Tonacci, com 20 anos em 1964, ano do golpe militar no Brasil. Esse trecho
mistura imagens documentais das demonstrações bélicas e ufanistas do regime a
fragmentos de filmes do próprio diretor, feitos em finais dos anos 1960 e
início dos 1970, quase como uma resposta direta – e com frequência ácida e
bem-humorada – ao absurdo da repressão política. Como no restante do filme,
essas imagens surjem como um lampejo, atravessadas por sons, melodias e sinais
nem sempre claros, para voltarem novamente a essa espécie de inconsciente tumultuoso
do tempo.
Mais à frente, a guerra e o universo
militar retornam nos vestígios da história do pai de Tonacci, esse mesmo oficial
que ele procura reviver, trajando seu uniforme, no roteiro de Paixões. As imagens desse projeto
interrompido em 1994 marcam, novamente ao fim do filme, o encerramento desse curto-circuito
histórico vertiginoso, em que as memórias pessoais, os traumas e as
experiências de uma vida habitam diferentes corpos e objetos, numa dinâmica
quase mítica de passagens iniciáticas, sobrevivências e incorporações (uma
consequência possível – me agrada imaginar – de sua persistente curiosidade
pelo pensamento indígena, ou simplesmente por modos menos científicos de
entender a relação entre a vida e a morte, o presente e o passado).
Sentado sobre a cama e
confrontando-nos diretamente pela primeira vez no filme, Tonacci pode ler então
a sua carta-manifesto, um trecho de O
Desprezo, de Alberto Moravia, em defesa de um cinema cuja forma e
fabricação estejam completamente mergulhadas na vida pessoal: "a maneira mecânica e habitual com a qual
se elabora o roteiro assemelha-se a uma espécie de estupro do engenho,
originado mais da vontade e do interesse, que de qualquer inspiração ou
simpatia. Naturalmente, pode também acontecer que o filme seja de qualidade
superior. Que o diretor e os colaboradores estejam ligados já em precedência,
de mútua estima e amizade e que por, em suma, o trabalho se desenvolva naquelas
condições ideais que possam verificar-se em qualquer atividade humana, por
quanto ingrata. Mas estas favoráveis combinações são raras, como de fato são
raros os bons filmes".
Narrativa de aventura, filme de terror,
romance de formação, ficção científica mabuseana, novela detetivesca – todas
essas visões estão presentes em Já Visto
Jamais Visto, mas nunca como fases distintas, e sim como "um só
movimento fílmico, corporificadas por um constante elo de lirismo"
(Glauber sobre Humberto Mauro). É fascinante que Tonacci e Cristina Amaral tenham
conseguido desenhar todo esse percurso quase que naturalmente, sem impor nada a
força ao espectador, e sem recorrer a qualquer tipo de referência literária e
textual mais concreta, como cartelas ou offs.
Numa época em que os jovens realizadores se deixam fascinar cada vez mais pela idéia do "filme de gênero"
(o que está longe de ser, por si só, um problema) Tonacci dá mais uma impressionante
lição de como encontrar o sentido do medo e da emoção (e isso sim, é um mérito
raro) a partir de uma necessidade absolutamente vital e dramática, e não apenas
como um mero capricho estilístico. Com ele, o cinema de invenção brasileiro
sobrevive.
http://www.lafuriaumana.it/
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